quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Remédios Santos sem Princípios Activos

Já nos terá passado pela cabeça que existam remédios santos sem princípios (ou como agora se diz, substâncias) activos? É a questão que a companhia de teatro Peripécia nos coloca no seu mais recente espectáculo: "Remédios Santos sem Princípios Activos". Não no plano meramente técnico ou científico, mas com alcance também na visão crítica de uma sociedade que persegue como obsessão a "pílula da felicidade".

A peça constrói-se inteligentemente em pequenas histórias que vão tocando umas nas outras, conferindo uma coesão interessante ao espectáculo. É nítida a preocupação de abordar os diferentes aspectos da indústria farmacêutica e da sua (omni)presença nas nossas vidas, mas sem cair no erro de criar sketches isolados; antes mantendo um fio condutor que se vai adensando. O tom é cómico, mas é claramente perceptível que ele se vai tornando mais noir até chegar ao sarcasmo, à ironia e mesmo ao escárnio presentes no final da peça. É paradigmática a afirmação do Guarda-Mor da Morgue dos Mortos de Marca: "Os Santos funcionam de forma muito esquisita... São uns dos maiores efeitos placebo da história da medicina...".

O espaço cénico é simples, mas eficaz. Em conjunto com o desenho de luz e som, e com recurso a diversos adereços (com uma utilização muitas vezes surpreendente), permite caracterizar com propriedade os diferentes ambientes que a peça pretende retratar: desde um sofisticado hotel onde decorre uma conferência da indústria farmacêutica até um sombrio laboratório. O elenco é homogéneo e coeso, conseguindo o salto entre um registo mais clássico e uma representação mais voltada para a expressão corporal, inspirada nos clowns. É uma marca que torna a peça reconhecível em qualquer parte do mundo como sendo de Peripécia Teatro (e que maior elogio se poderá fazer aos actores e ao encenador?). Faço uma referência especial à cena em que o técnico de vendas promove os produtos da sua multinacional farmacêutica: plena de ironia, com uma utilização fantástica dos recursos cénicos (um computador e um retroprojector) e baseada numa contracena cheia de cumplicidade, consegue em poucos minutos fazer-nos reflectir sobre a nossa condição de utilizadores (ir)racionais do medicamento.

Fica claro, ao longo do espectáculo, que os autores nos pretendem transmitir uma mensagem clara sobre os estragos que a indústria farmacêutica causa na nossa sociedade. Os lucros fabulosos. A prescrição errada de psicofármacos que é impulsionada pela pressão da indústria farmacêutica sobre os médicos. Os negócios escuros envolvendo a descoberta de novas substâncias activas e os grandes laboratórios farmacêuticos. A mudança de paradigma da descoberta de novas substâncias activas e a importância crescente da farmacoeconomia. Não será por acaso que José Maria, portador de uma válvula cardíaca artificial defeituosa, cita George Orwell. Ou que até um jovem Hitler apareça nos laboratórios da Bayer e seja sujeito a ensaios clínicos com heroína.

Como futuro profissional na área farmacêutica, não concordo com toda a ideologia veiculada na peça. Faço um mea culpa relativamente ao uso de antidepressivos e outros medicamentos. Mas não penso que a ritalina administrada aos hiperactivos seja um mal absoluto, é antes um compromisso possível entre risco e benefício. Os lucros fabulosos serão absolutamente maus? Ou também permitem que continuem a surgir novos medicamentos para o cancro ou anti-retrovíricos para o tratamento da SIDA? Sem esquecer o importante papel da indústria farmacêutica na economia de mercado, que, apesar dos seus defeitos, foi o sistema económico que mais gente tirou da miséria.

De qualquer modo, estes "Remédios Santos sem Princípios Activos" são uma óptima proposta se quer ir ao teatro. Fazem rir, pensar, concordar e discordar, mas nunca nos deixam indiferentes. E pode ser que ainda consiga descobrir um remédio santo...

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